O que aconteceu entre nós

Na última vez que nos encontramos, ainda no abraço de como vai, sua voz sufocada no meu ombro, você me perguntou o que aconteceu entre nós. Emudeci, desprevenido. Vasculhei passado, sentimentos, memórias, bolsos, nos poucos segundos de engolir em seco. Fingi tosse, procurei sinal do ônibus se aproximando, olhei a tela do celular, torci para que algum transeunte conhecido nos interrompesse. Nada naquela esquina comum lembrava cruz ou espada. E lá estava eu.

Você deu uma risada curta, acenou de leve espantando mosca ou abelha inexistente e começou a falar de sua vida atual com ares de noticiário. Tentei ouvir e murmurar expressões vazias e confirmativas nos intervalos certos, já perdido nas palavras que querem responder sua pergunta, mas não sabem como se organizar e me forçar a emiti-las. Palavras acompanhadas, claro pela voz do Roberto Carlos: …de todos os abraços, o que eu nunca esqueci, meu bem querer tem algo de rádio AM. Sua voz ainda tem aquele acento bem humorado de quem sabe algo especial e meio ridículo sobre qualquer coisa da qual o resto do mundo nem faz ideia.

Pisco, pois percebo que estou olhando fixamente pra sua boca. O que aconteceu entre nós? Aconteceu sua boca na minha boca, um tanto de tempo que parecia sempre. Vasculho seu rosto compenetrado nas notícias que me apresenta e percebo, intrigado, que não há nada na sua face que eu desconheça, mesmo as novas linhas e as pequenas rugas, que não eram, me são íntimas como se eu acordasse todo dia com seu rosto diante de mim. E acordo. É o seu rosto no fundo de cada copo de álcool, sua sombra nas dobras dos sonhos esquisitos, sua presença nos vultos vistos à revelia no espelho do banheiro. É você nos tropeços de cada dia e, em cada lágrima chorada por tudo ou outra coisa, escorre essa saudade que me agonia enquanto você continua nas manchetes de sucesso e felicidade.

A verdade é que não sei ao certo em que momento nos separamos.  Certamente foi antes das malas na sala, os beijinhos na bochecha, os votos mútuos de felicidade. A tv, geladeira e fogão pra você. Estante e cama com colchão pra mim. Fingimos não saber a distância até não podermos mais atravessá-la. Mesmo quando eu me enfiava bem fundo em você, não era lá que eu estava e nem lá que você me recebia, habitávamos silêncios distantes, sem fronteiras em comum. Meu olho lacrimeja, eu esfrego para me livrar de um ausente cisco. Percebo o silêncio e sua postura confusa. Parei de dar as respostas certas ou você acabou o balanço da vida?

Outro abraço, agora de despedida, você pergunta de novo, mais pra si mesma do que pra mim: o que foi mesmo que aconteceu? Não respondi, enfiei meu nariz entre os seus cabelos, apertei sua bunda, passeei os dedos pelos lados do teu corpo até afagar um seio, não sei bem se buscando a resposta nas tuas reentrâncias ou esperando distrai-la da questão. Você mordeu o lóbulo da minha orelha, enfiou as unhas no meu antebraço, sugou com força meu pescoço até deixar uma marca que se arroxearia com o passar do dia, não descobri se era desejo ou vontade de me machucar, o ônibus chegou, subi sem olhar pra trás.

Passei a semana pensando se deveria. Se queria. Se podia. Resolvi que sim. Esperei o domingo, que é dia de recomeços ensolarados. Amanheci com a mensagem da sua melhor amiga, aquela que eu comi na nossa cama em algum momento do, nenhuma palavra de introdução ou contexto, só uma figurinha estilizada, fundo preto, cruz, letra prateada, seu nome, as datas e o endereço da funerária.

Life_no

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